Vidas longe das telonas

Diante do agravamento da pandemia, frequentadores assíduos de salas de cinema estão há mais de um ano longe da tela grande

(Foto: Canva)

Sentar em uma sala escura e sentir aquele delicioso cheiro de pipoca não é mais seguro. Esquecer os problemas da vida e passar duas horas totalmente imerso em uma experiência única são ações que se tornaram sinônimo de saudade para milhões de brasileiros. Coisas que eram rotineiras se tornaram riscos à saúde - e uma delas é frequentar o cinema.

O setor dos cinemas vem passando por uma grande instabilidade desde março de 2020. A chegada da pandemia da Covid-19 provocou o fechamento em larga escala das salas em todo o Brasil, como uma das medidas de tentativa para controlar o número de casos da doença. Meses depois, quando houve uma aparente melhora na taxa de contaminação do vírus, os estabelecimentos voltaram a abrir as portas, seguindo uma série de protocolos de segurança. Mesmo assim, os números mostram que a maioria do público não retornou.

Segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), houve uma queda de cerca de 77% no número de pessoas que foram aos cinemas no país em 2020, em relação a 2019. O início de 2021 apresentou uma piora na pandemia, o que refletiu na redução de mais de 90% de espectadores presentes nos cinemas brasileiros durante as primeiras seis semanas de exibição em comparação ao mesmo período do ano anterior.

A publicitária, atriz e dubladora Tania Champes, de 44 anos, não sentiu falta dos cinemas no início. Mas, quando 2020 foi chegando ao fim, a saudade bateu mais forte. “No começo da pandemia, eu estava muito introspectiva. Então, sinceramente, não pensei muito a respeito de nada. Eu só estava tentando resolver a bagunça que estava dentro de mim”, revela. Ela destaca sentir falta da Cinesala, que existe desde 1962 no bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. “É esse cinema de rua, gostoso, que a gente vai e sempre os filmes são mais alternativos”, lembra.

(Foto: Canva)

Obras nacionais

Durante o período de isolamento, Tania passou a valorizar e prestar mais atenção em produções brasileiras. “Eu acho que diz muito a respeito de onde a gente está, da nossa realidade, e eu acho que a gente precisa explorar mais isso, até para a gente ter repertório para também começar a criar coisas”, afirma.

Dentre as novas descobertas, está a série “Cidade Invisível”, produzida pela plataforma de streaming Netflix, que conta a história de um detetive que tenta desvendar um mistério que envolve elementos do folclore brasilero. Para Tania, a série possui “um roteiro maravilhoso, que dá valor ao nosso folclore, à nossa cultura, e eu falei: ‘Caramba, que maravilhoso!’. Eu achei de uma qualidade incrível”, diz.

Outro projeto que chamou a atenção de Tania foi “Filhas de Eva”, série produzida pela Globo e lançada exclusivamente no serviço de streaming Globoplay. O título narra a trajetória de três mulheres presas a padrões que não as deixam felizes e decidem mudar de vida. “Uma produção nacional também, que de uma forma muito delicada e do cotidiano, fala sobre o machismo, e fala de um jeito muito bonito”, comenta.

Quando a pandemia chegar ao fim, Tania acredita que o público dos cinemas será ainda maior do que era antes, devido à variedade de assuntos que a arte consegue abordar e às oportunidades de criação. Por isso, este será um mercado promissor para a produção de novas obras. Para ela, enquanto houver humanos, vai existir cinema: “O mais real possível do que é humano, tanto em estética, quanto em complexidade de sentimentos, ele é um espelho do que é humano. Quando eu olho pro cinema, eu vejo humanidade. Humanidade registrada”.

Já o estudante de cinema e cineasta Judá Mota, de 22 anos, encara com mais pessimismo a possibilidade de os espectadores voltarem com força às salas de cinema. Ele acredita que apenas os aficionados por obras cinematográficas terão afinco para frequentar os estabelecimentos novamente.

“Acho que o público não é tão saudosista quanto os cinéfilos”, afirma. Com a cidade de São Paulo de volta à fase mais restrita da quarentena, entre março e abril deste ano, quando os espaços foram fechados novamente, o estudante acredita que os estabelecimentos irão retornar ao funcionamento assim que os empresários quiserem.

Judá recorda que, quando a pandemia começou, ele imaginou que a situação de isolamento não demoraria muito tempo a passar. “Fui crente que ficaria tudo fechado por alguns meses. Já passamos de um ano”, diz. Desde então, consome produtos provenientes de pirataria e de plataformas de streamings. Destaca o serviço de vídeo sob demanda da Amazon, o Prime Video, pois acredita que “em poucos anos, será tão grande ou maior do que a Netflix, porque está focando em montar um catálogo próprio de qualidade, e não somente em quantidade”.

(Foto: Canva)

Democratização do cinema

Devido às transformações que ocorrem na sociedade com o passar do tempo, Judá acredita que, em três décadas, o cinema como é conhecido atualmente terá chegado ao fim. O formato tradicional da tela grande se tornaria, então, um produto conceitual e mais segmentado, e a indústria migraria para o universo virtual: “O mundo é a internet, a forma de consumir conteúdo está mudando de uma forma incrível para nós. Tudo está mais perto, mais acessível. Mais histórias são vistas. O cinema está mais democrático”.

Natália Bridi, jornalista cultural, ex-editora chefe do portal Omelete e especialista em cinema, reflete sobre os desafios do futuro da sétima arte em suas redes sociais: “O desafio vai ser, quando a situação normalizar, entender como o público vai se comportar depois de dois anos. Se estará mesmo disposto a sair e arcar com todos os custos de uma ida ao cinema”. Ela completa: “Ou se vai se dividir entre a sala de casa e a sala de cinema. De qualquer forma, meu palpite é que essa é uma área que não voltará ao mesmo ponto em que parou lá no início de 2020”.

Reinvenção dos espaços

O criador de conteúdo para a internet Raphael Camacho, de 34 anos, é dono da página Guia do Cinéfilo, com 10,5 mil seguidores no Instagram, e não vê um final definitivo para o setor. Mas acredita que as redes de cinema deverão buscar formas de se reinventar: “Passará por modificações. Não bastará aos cinemas exibir o filme apenas. Tem que ter criatividade para fazer o espectador ficar ali naquele ambiente mais tempo”. É através da tela do cinema que ele conhece a história do mundo e viaja para lugares para os quais nunca foi.

Sem ver um filme em uma sala de cinema desde fevereiro de 2020, Raphael usou o tempo de pandemia para se voltar para os clássicos e reassistir obras que há muito não via. “Se, infelizmente, não podemos ir ao cinema, me importo em assistir a um filme onde quer que seja”, diz. Para ele, a plataforma de streaming Mubi é a que melhor atende às suas necessidades. O serviço de vídeo sob demanda disponibiliza títulos selecionados por curadoria e se concentra em longas antigos e produções consagradas em festivais internacionais.

Por conta do fechamento dos cinemas, inúmeros lançamentos de filmes foram adiados no Brasil e no mundo. Entre os adiamentos, a produção que deixava Raphael mais animado era “Um Lugar Silencioso - Parte II”, terror que acompanha uma família em uma realidade onde é perigoso fazer qualquer barulho. O longa que teria estreado em março de 2020, exatamente no momento em que a pandemia se alastrou, tem lançamento nacional previsto para junho de 2021. “Só fui percebendo que demoraria a entrar em uma sala de cinema quando nosso país muito mal governado foi tomando péssimas medidas de controle para combater a passagem dessa doença”, conta.

(Foto: Canva)

Cinemas outdoor

Uma solução que alguns cinemas encontraram foi a exibição de filmes em sessões drive-in, com projeções em telões ao ar livre para as pessoas assistirem do interior de seus próprios carros e escutarem o som através do rádio. Raphael vê esse estilo de projeto como uma boa ideia e que poderia continuar a ser explorada mesmo após a pandemia.

Na cidade de São Paulo, o Petra Belas Artes, em parceria com o Memorial da América Latina e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, exibiu clássicos de diretores como Stanley Kubrick, Martin Scorsese e Christopher Nolan. Em três meses de funcionamento, a iniciativa atraiu cerca de 38 mil espectadores.

No entanto, essa modalidade de exibição de filmes não contempla todo o público. O estudante de jornalismo Renan Honorato, de 21 anos, não participou de nenhuma sessão drive-in. Além de não possuir automóvel, ele acredita que a experiência não deve se igualar às salas de cinema tradicionais: "Acho uma dinâmica desconfortável e de pouca qualidade técnica. Meu rádio do carro nunca vai ser tão bom quanto um IMAX”. Ele passou a consumir mais conteúdos de streamings, por ser a única opção disponível para sua realidade.

Apego aos espaços físicos

Antes da pandemia, Renan costumava ir ao cinema cerca de uma vez por semana, porém, quando os estabelecimentos foram fechados, não deu tanta importância para o fato. “Não senti falta deles nos primeiros meses, mas quando fui vendo que íamos ficar presos por um bom tempo em casa, comecei a sentir falta de poder sair, e por extensão, ir ao cinema”, conta. Esse período de quarentena fez com que ele perdesse o interesse em lançamentos, mesmo quando disponíveis nas plataformas de streaming, e na indústria cinematográfica no geral.

Renan encara o cinema como uma maneira de se entreter, mas também adquirir conhecimento. Os filmes são uma mistura de assuntos sérios e leves que "fazem a gente ser levado para outras narrativas que não nos pertencem, mas nos completam como seres humanos, que abre horizontes”, explica.

Para ele, a geração atual tem um apego com o espaço físico do cinema. Por isso, não vê os espaços sendo extintos em um futuro próximo: “Mas se novas pandemias acontecerem, é possível que novas gerações não tenham esse mesmo afeto. E sem afeto, nada dura. Já ao cinema como arte, acho que será eterno até que se finde a criatividade”.

(Foto: Pixabay)


Por Augusto Ferreira e Vinícius Galan

Comentários

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