Johnny e June (2005) - Análise de Cinema

A falácia do culto ao ídolo

(Foto: Country Music Nation)

A filmografia de James Mangold sempre manteve elementos formais e estilísticos muito característicos. O tom realista e sombrio das narrativas e o espaço e liberdade para os atores brilharem, criando nos personagens laços pessoais únicos entre os próprios, marcam diversos longas do cineasta. Em ‘Garota, Interrompida’ (1999), gravado em um hospital psiquiátrico, conhecemos a história de Susanna (Winona Ryder), que sofre de transtorno “borderline”, e a amizade excêntrica com Lisa Rowe (Angelina Jolie), jovem sociopata, papel que consagrou Jolie no Oscar.

Dezoito anos depois, Mangold elevou o cinema de herói a um lugar mais melancólico e cinzento. ‘Logan (2017)’ traz o trio principal de protagonistas em diferentes fases da vida, interagindo de maneira sinestésica e tocante. Mesmo no contemporâneo ‘Ford vs Ferrari’ (2019), em que pouca coisa funciona, os corredores de Fórmula 1, Carrol Shelby (Matt Damon) e Ken Milles (Christian Bale) constroem uma amizade verdadeira, mas claro, com a marca do diretor sendo traduzida num final um tanto quanto trágico. Entretanto, o ápice da carreira do cineasta acontece em 2005, nessa que é uma das maiores cinebiografias musicais do século XXI. 

Acompanhamos o som e a conturbada trajetória da lenda da música country, Johnny Cash (Joaquin Phoenix), e sua parceira, a cantora June Carter (Reese Whiterspoon). O que vemos no filme é um palco destinado com carinho para os astros representarem do ínicio ao fim performances memoráveis, marcando a carreira de ambos os atores responsáveis pelo feito. Portanto, não foi surpresa nenhuma ver Witherspoon sendo reconhecida pela academia com a estatueta de melhor atriz, e Phoenix indicado pela primeira vez como ator principal.

A química entre os dois é evidenciada através de longas sequências fotográficas de campo e contracampo, prolongando as ações compartilhadas de maneira a tornar a relação de Johnny e June, vívida, pulsante e crua, como o relato do relacionamento pedia. Com zooms de close-ups frequentes acentuando os transtornos psicológicos da dupla, a iluminar faces ávidas por um jogo de conquista e perda pessoal. Porém, o que mais impressiona é como Mangold deixa a câmera focada por minutos em um só personagem, sem precisar ter pressa para dinamizar a história. Como é o caso de uma das cenas mais icônicas do filme, em que o cantor tem um acesso de raiva descontando na destruição do espaço a volta. A pia acaba pagando o maior preço.

Mangold sabe que escolher mostrar a alma ao legado pode ser um caminho muito mais honesto com Cash, não caindo na superficialidade de retratar a figura intocável e divina do ídolo por demanda da cultura do fã. Nisso, longas como ‘Bohemian Rhapsody’ (2018) apresentam tremenda superficialidade, e películas como ‘Controle: A história de Ian Curtis (2007)’ adquirem profundidade. A metafísica floresce com mais importância do que o culto ao ídolo.

Esse ritmo e abordagem também serve para construir as personalidades dos artistas com mais ambiguidade, o mínimo que humanos complexos e dúbios merecem. Cash tem muito do que o americano médio quer esconder, calejado pela vida, segue regras e motivações próprias que vão de encontro com a ética da sociedade. A transformação pessoal que vive abraça com o tempo o lado sujo e imoral da sociedade, encontrando uma única resposta aos abusos do pai, à morte fatídica do irmão, e ao ambiente corruptível do pós-guerra. Incorporadas ao diferencial como profissional, as canções inspiradas nos hinários da igreja somem para dar espaço às sobre, em parte, experiências de guerra e criminalidade, fazendo sucesso e como. 

(Foto: Locus Cinema)

Afinal, estamos nos anos 50, momento de perda da fé na bondade do homem após anos de chumbo e matança. De uns EUA que ainda carrega herança escravocrata notória. As sutilezas alcançadas na visão urbana de Cash de uma criança afro-americana engraxando sapato, e posteriormente de uma empregada doméstica negra atendendo à porta na mansão dos burgueses a um cidadão trabalhador que ainda não havia conseguido se sustentar com a carreira musical e nem com vendas, não passa despercebida.

O auge da mudança de Cash vem nos anos 60, com a gravação de seu disco mais famoso, “Folsom Prison Blues”, em um presídio de segurança máxima, usando preto, numa espécie de purgação digna de um personagem noir. A figura underground já mostra cem por cento do próprio valor. Ele não bebe coca-cola, não senhor. Bebe é da água dos presidiários.

Enquanto Johnny carrega o fardo de uma relação patriarcal mal resolvida e as consequentes sequelas do abuso de drogas, June tem de levar nas costas todo o peso de uma mãe solteira batalhadora tentando vingar na carreira musical, rodeada por homens no ambiente machista e opressor da época. A personalidade dela é totalmente moldada por esse desejo e determinação por sucesso, na busca por sossego e consolidação financeira. Além de enfrentar os julgamentos preconceituosos de ser mulher e ter se divorciado, o tradicional estigma da separação que vem desde o período bíblico de Cristo.

Mesmo com todas as problemáticas, June vê na parceria com Johnny uma alternativa viável de atingir os objetivos. Porém, os sentimentos entre os dois começam a ficar à flor da pele com o passar do tempo, a gerar um relacionamento amoroso no mínimo conflituoso. O mito da mulher salvadora, tradição que opera desde o surgimento do gênero cinematográfico ‘Western’, poderia perpetuar estereótipos na figura de June, por ajudar Cash na luta contra o vício em opiáceos e na redenção moralizante de um homem quebrado e perverso. Mas, ainda bem, não é o caso aqui. Apesar do desfecho narrativo conservador, todas as contradições e forças da cantora são muito bem trabalhadas, superando e muito a superfície de um debate de extremos. 

(Foto: Alpha Coders)

No final das contas, “Walk the Line (2005)’, “andar na linha” no título estadunidense do filme, não poderia ser mais oportuno, é tudo que Johnny Cash definitivamente não conseguiu, e nem queria. Quase que um comportamento recorrente dos meros mortais que conquistaram coisas grandes na humanidade e são lembrados até hoje por isso. Não, a maioria deles não era “boazinha” e sociável, e nem tinha a obrigação de ser.

Esse dever de mostrar o anti-herói americano com coragem, tirar o ícone da posição idealista, o trazer para a realidade, expor os instintos cruéis, o drama e todo o ônus da fama, é o que faz do filme um real acerto. A partir e principalmente por causa da desconstrução de um zelo póstumo hipócrita, que o longa honra genuinamente o “Man In Black”, chegando onde poucas biografias conseguiram. Perpetuando seu caráter ambivalente e pecador, e assim a preservar sua obra cultural para a eternidade. 

*Em homenagem aos 17 anos do falecimento de Johnny Cash.

Nota: 4/5.

Onde ver? Telecine Play e Looke.

Confira o trailer:



Por Vinícius Galan

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas