Destacamento Blood (2020) - Crítica Cinematográfica

Cinema como ferramenta de protesto

(Foto: Divulgação/Netflix)

Em toda a trajetória artística, o cineasta estadunidense Spike Lee sempre entendeu e utilizou-se do cinema como ferramenta de protesto, resistência cultural e holofote a histórias que nunca tiveram voz no grande mainstream do audiovisual norte-americano. Seja denunciando os efeitos da raiva racial e a violência policial em ‘Faça a Coisa Certa’ (1989); contando a história de um dos maiores líderes do movimento afro-americano do século XX em ‘Malcolm X’ (1992), ou, em uma das mais recentes obras do diretor, ‘Infiltrado na Klan’ (2018), retratando as desventuras de um policial negro infiltrado na Ku Klux Klan (organização terrorista que segue os ideais do supremacismo branco). 

Agora, em ‘Destacamento Blood’, produção feita com exclusividade para a Netflix, estreante na plataforma de streaming na última sexta-feira (12), Lee nos leva a conhecer a vida de um grupo de veteranos da guerra do Vietnã, e a busca por um tesouro enterrado à época do conflito, que é motivo de procura e disputa na contemporaneidade.

‘Destacamento Blood’ retrata os efeitos do trauma e do sofrimento de guerra como os pontos centrais da narrativa daqueles que foram os principais afetados pelo confronto histórico de 1969. Os vietnamitas, alvo do genocídio estadunidense, e os negros americanos, que foram colocados na linha de frente da zona dos conflitos armados, prontos para perder a vida por um ideal nacionalista infundado e criminoso, que caminha de mãos dadas com a branquitude imperialista e sanguinária existente desde os primórdios da humanidade. Ambos os grupos são retratados, no longa, como os protagonistas da luta pelo ressarcimento financeiro, e a reparação mínima da opressão sistemática que sofreram, traduzida através da caça pelo ouro, que ganha, posteriormente, a concorrência desleal dos franceses. 

Trauma e sofrimento que resultam em efeitos danosos e implacáveis em Paul (Delroy Lindo), ex-militar moldado pela convivência com o companheiro de guerra, Norman (Chadwick Boseman), defensor dos direitos humanos e ideologias progressistas. Norman, morto durante o conflito do passado, serve como uma figura mitológica para toda a equipe ‘Blood’, numa referência iconográfica direta à ‘Pantera Negra’ (2018), protagonizado por Boseman.

Spike Lee. (Foto: Divulgação/IndieWire)

Carregando a culpa pela morte do amigo por toda a vida, Paul se transforma após se identificar com a ascensão do conservadorismo, ressignificando o sentimento de pertencimento a algo, que havia perdido pelo vasto tempo de luto. Começa a enxergar no político Donald Trump, e no slogan ‘Make America Great Again’, uma forma de inclusão pessoal, cura inversa para feridas antigas. A aceitação de si mesmo, olhando o instinto da individualidade como algo sem a possibilidade de autocontrole. 

E a ressignificação é um traço extremamente potente da obra, Spike Lee se apropria de símbolos de honra estadunidense para subverter seus valores históricos e desconstruí-los, denunciando figuras consolidadas, como o primeiro presidente norte-americano, George Washington, ao citar seu passado escravista. A própria Hollywood é humilhada aos montes, os personagens que a construíram do chão ao topo, correlacionando com o ‘Star System’, vão parar na lata do lixo. Os reis do entretenimento, Rambo e Chuck Norris, são tratados como figuras incoerentes, obtusas, e irrelevantes. 

A trilha sonora de 'O Nascimento de uma Nação' (1915), filme de D. W. Griffith, revolucionário em termos de linguagem e técnica, mas famoso por seu cunho racista e bárbaro, e posteriormente aplicada por Francis Ford Coppola no épico 'Apocalypse Now' (1979), que também trata do embate no Vietnã, é mais uma apropriação cinematográfica, que aqui, ganha um significado diferente. Com muito bom humor, é claro.

Aliás, o bom humor é uma característica marcante da filmografia de Lee, seus personagens quase sempre beiram o cartunesco, o caricato, o novelesco. A ponto de em 'Chi-Raq' (2015), as protagonistas rimarem constantemente ao som do Rap, impondo abstinência sexual aos parceiros enquanto eles não param de matar uns aos outros na disputa das gangues de Chicago. É paradoxal pensar que histórias tão realistas possam ganhar estes contornos e continuar tão verossímeis, mas é no entendimento do quão absurda é a realidade, ou surreal pensar e refletir sobre injustiças e descaso social, que o conceito do real se desfoca e desdobra.

Norman, personagem vivido por Chadwick Boseman. (Foto: Divulgação/Netflix)

A proposta realista também é embasada no documental, a partir do uso de imagens e vídeos de arquivo, intercalando o material com a dramaturgia da trama, indo do passado ao presente, e vice-versa. Os ativistas políticos, Angela Davis e Martin Luther King Jr., e o músico Marvin Gaye são alguns dos ícones integrados à narrativa, de forma a valorizar e evidenciar seus legados. Reviver momentos clássicos é visto, portanto, como algo fundamental para tentar entender os problemas do presente, e todas às perspectivas que cercam a realidade. 

Problemas esses que vem sendo muito discutidos na atualidade, a causa ‘Black Lives Matter’ (Vidas Negras Importam), movimento de estopim em 2013, a partir do uso de hashtags nas redes sociais, e que agora ganha extrema força após o assassinato de George Floyd, segurança afro-americano brutalmente violentado por um policial que o manteve imóvel por 9 minutos com o joelho em seu pescoço, sem que Floyd pudesse respirar, e símbolo mais do que presente nas consequentes manifestações pela luta racial nos EUA, também integra o filme, convergindo muito bem com a trama total.

‘Destacamento Blood’ é, sem novidade, e principalmente, sem precisar ser novidade, mais uma crítica ferrenha, ácida e necessária de Spike Lee ao ‘establishment’. Jóia bruta de uma carreira regada à contracultura, por um cineasta especialista em desnudar e jogar a sujeira que está embaixo do tapete na cara da sociedade, desde 1979. E que sorte a nossa, que, por tanto tempo.

Nota: 4/5.

Trailer legendado:


Onde ver? Netflix.


Por Vinícius Galan

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